Um carpinteiro que jura que não bebe

Trabalho há 10 anos numa carpintaria em Paços de Ferreira. Neste momento, somos 45 pessoas, divididas por vários pavilhões que precisam urgentemente de remodelações.  Tudo gente normalíssima, desde o nosso gestor de encomendas até aos operadores de máquinas. Os nossos clientes são gente normal. Eu sou gente normal (espero eu).

 Mas os carpinteiros não são gente normal.

Não sei se alguma vez entraram numa carpintaria à moda antiga, mas retrato-vos uma. 

O primeiro ponto a observar é a falta de iluminação natural. Uma carpintaria à moda antiga é, principalmente, um edifício com telhado fabricado com plástico ondulado. Ou seja, ninguém vê um piço lá dentro. 

Segundo ponto - barulho. Uma carpintaria está desenhada para que uma conversa seja impossível e, se já conversaram com um carpinteiro, vão agradecer a deus por isso. 

O terceiro ponto é o fator perigo, dado que há sempre alguma treta que te pode dar cabo de um dedo ou um braço. SEMPRE. Sejam empilhadores, máquinas em movimento, peças de madeira a saltar ou pó nos olhos, uma carpintaria não é sítio para gente sensível. Uma carpintaria é um sítio para gente como o Nando.

O Nando tem 46 anos. Olhos esbugalhados, barba sempre feita e usa camisas de flanela mesmo no verão. Tem um ligeiro aroma a quem ficou até demasiado tarde no café - porque ficou. Há duas semanas, apesar de ter mulher e filho, foi para o bar e engatou uma mulher de 66 anos. Ao perguntarmos se valeu a pena (que obviamente não valeu) ele só responde "claro, era mulher". Nunca usa equipamento de proteção, principalmente uma pequena varazinha que se usa para deslizares as placas de madeira sem colocares os dedos perto da serra.

O Nando decidiu, numa bela tarde de Junho, concretizar o seu destino: sacar 3 dedos fora ao trabalhar com uma serra. Aparece à beira de uma funcionária nossa e diz que não está bem. A funcionária pergunta o que se passa. O Nando mostra os 3 dedos, completamente cobertos de serrim ensanguentado, e a funcionária fica confusa durante uns segundos. Até se aperceber do que era. 

Berros por todo o lado, o Nando está no chão a aperceber-se do que aconteceu enquanto chora de dor, vejo 2 pessoas a correr, pânico geral. Chego lá e uma colega teve os tomates de pegar nos dedos, lavá-los e ir a um vizinho pedir gelo. Coisa que não valeu muito a pena porque agora o Nando só tem dois dedos (o polegar e o mindinho) e está sempre a fazer aquele gesto que se fazia em 2010 a dizer "baril".

Agora, meus amigos, quero que perguntem a todas as pessoas familiarizadas com trabalhos manuais se conhecem alguém que já teve um corte grave na mão ou no dedo. Provavelmente a resposta será sim. Mas nunca conheceram ninguém que tenha cortado 3 dedos, principalmente porque chegas ao 1º e pensas "assim tá bom". 

Resta a pergunta: como?

A resposta é os brandys que o Nando tinha bebido ao almoço. Aliás, os brandys que o Nando JUROU não ter bebido ao almoço. Não um, não dois, mas três - um por cada dedo. 

Depois disto, o Nando ficou a trabalhar na fábrica, mas claramente que perdeu os privilégios de sacar mais membros do corpo fora. A partir daí, só trabalhou com máquinas que não eram perigosas. Começou a bufar ao balão depois do almoço. Sempre 0.0. Aprendeu a lição.

Há umas semanas atrás ouço um estouro enorme no fundo da fábrica. Mas um estouro como vocês nunca ouviram, que mais parecia que o fogueteiro daqui da zona pediu um míssil emprestado para arrebentar nas festas da freguesia. Não. Foi o Nando.

O Nando, que não tem carta de empilhador, experiência a andar de empilhador, ou sequer capacidade de perceber como é que o empilhador funciona decidiu pegar numas placas sem a extensão dos garfos. Resultado? Pegou nas placas, inclinou a torre e lá se foram +2500 euros em painéis de aglomerado. Mas no meio das placas caídas onde está o Nando? Poderia ter morrido? 

O Nando está, com toda a segurança, dentro do empilhador, completamente rodeado de placas e outras tábuas que caíram à volta dele. Não consegue sair e diz que está tudo bem. Começamos a "desenterrá-lo". Placa a placa (eram placas enormes) com outro empilhador. Quando acabamos, o Nando está sentado no empilhador, a dormir. Cabeça encostada a uma tábua que provavelmente caiu-lhe a centímetros da cabeça. 

Escusado será dizer que acusou outra vez álcool.

Dito isto, lá vai o Nando pra casa. "Férias merecidas", disse ele, enquanto eu imaginava como iria ser o litígio com o seguro. Acabou por ficar tudo bem e demos-lhe um colete refletor a dizer "engenheiro de segurança oficial".  O patrão não o olha nos olhos.

Há uns dias atrás disse-nos que tinha reparado que ultimamente não tinham havido acidentes na fábrica. 

Comentários

  1. "Coisa que não valeu muito a pena porque agora o Nando só tem dois dedos (o polegar e o mindinho) e está sempre a fazer aquele gesto que se fazia em 2010 a dizer "baril"." --> MORRI, esquece. Parti-me a rir enquanto fazia o gesto

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