A minha vizinha idosa é guna

Estou a fazer umas renovações a 16 km do cu de Judas (conhecido oficialmente como Arcos de Valdevez). O percurso até lá consiste em estradinhas apertadas, sete ou oito quase-atropelamentos, e a travessia de freguesias com um PIB de 25 cêntimos. Da primeira vez que fui lá, senti que tinha acabado de começar um jogo de Silent Hill.

Nessa terrinha temos uma pequena casinha herdada por um amigo meu. Foi, em tempos, parte de uma micro-comunidade do século passado. As nossas análises altamente não-profissionais indicam que a casa foi construída em 1870, uns anos depois da mãe do Cavaco Silva ter dado à luz esse menino.

Com o tempo, todas as casas em redor acabaram abandonadas. Hoje, só restam silvas, um cagaço enorme de vespas asiáticas e paciência para conversar com os velhotes da freguesia.

Se és do campo, sabes que aqui há uma regra: se tens um problema, és tu que o resolves. Nada de polícia, nada de presidente da junta com vontade de ajudar. Aqui, há porrada na praça pública. E tu NÃO queres andar à porrada com quem trabalha na agricultura.

Seguindo essa lógica, decidimos fazer amigos, não inimigos.

Foi assim que nos começámos a dar bem com a Cleonice. Uma senhora baixinha, energética, com mais de 80 anos.

A D. Cleonice veio de França há uns 10 anos. Desde então, já teve quatro litígios em tribunal por difamação. A senhora é uma simpatia. Tem classe, é articulada, educada… apesar de ser muito racista. Usa um colar de ouro que diz “Cleonice”, mas bem podia dizer “Rainha desta merda toda”. Vive sozinha num casarão que comprou com um dinheiro herdado de um ex-empregador. Ninguém sabe o que se passou entre ela e esse empregador, mas já nos disse que ele tinha mulher e filhos.

Quando começámos a ir lá à terrinha, chamámos logo a atenção de toda a gente. Dos emigrantes da casa em frente, que aparecem no verão. Dos vizinhos, que muito provavelmente têm uma plantação de cannabis. Dos tios emprestados do meu amigo, que oferecem um garrafão de vinho. Que, no fundo, é só um pretexto para tentar vender outra casa toda partida por 25.000 euros acima do que vale.

Mas, em particular, chamámos a atenção de um pastor de ovelhas. O homem usava a parte de baixo da nossa casa (abandonada) para guardar o rebanho.

“As coisas aqui funcionam diferente”, pensámos nós.

Mas a D. Cleonice deu-nos logo o aviso:

“Esse gajo é o maior filho da puta daqui da zona.”

Explicou que dois dos litígios em tribunal foram por causa dele. Segundo ela, o homem andou a dizer que, em França, a Cleonice era prostituta. Não só prostituta, mas prostituta exclusiva de africanos. O que, para uma senhora com perspetivas étnicas de meter inveja ao Ku Klux Klan, é a maior ofensa possível.

Disse-nos que chegou a considerar matá-lo. Levou uma espingarda para a igreja e ficou à espera dele. Felizmente, lá a convenceram a acalmar (deve ter sido uma missão impossível). Eventualmente, percebeu que tinha mais dinheiro do que ele e decidiu resolver a coisa em tribunal. Ganhou um processo, o outro ficou em águas de bacalhau.

Mas deixou bem claro:

“Se fizerem favores a esse gajo, tornam-se inimigos meus.”

E foi aí que percebi. Não quero estar no lado errado da Madrinha francesa de origens duvidosas.

Ora, um dia começámos a limpar a parte de baixo da casa. Estava cheia de palha e merda de ovelha. Decidimos encontrar o “ocupa” e avisá-lo que o espaço era nosso e que já tínhamos a máfia local do nosso lado.

A casa do homem era tipo o triângulo das bermudas do Norte. Nunca a encontrávamos. Mas um dia, por sorte, vimo-lo a passear. Perguntámos o nome e bingo: era ele.

Falámos com respeito, educação. Pedimos que retirasse as ovelhas e que nós limpávamos o resto. Muito civilizados. Demasiado até.

A resposta?

“Se se vão armar em filhos da puta e foder a vida às pessoas daqui, eu mato-vos.”

Ó chefe, tenha lá calma. Só queremos usar o que é nosso. Começámos a discutir (muito). O homem agarrou na sachola, ameaçou partir-nos as pernas, acusou-nos de roubar coisas… e nós ali, sem perceber como a coisa escalou tão rápido.

Mas tínhamos sido estratégicos. Tínhamos feito alianças.

Ao longe, vemos uma figura pequenina a aproximar-se com calma. O homem ainda aos berros. Até perceber que vem aí a Cleonice. Cala-se logo. A cara muda de cor. Pousa a sachola ao ombro e vai-se embora.

Dois minutos depois, lá chega ela.

“Meteu-se logo a andar, o franganote.”

Foi neste momento que percebemos o verdadeiro poder da mulher enviada pelos anjos. Esperançosamente diferentes dos da Joana Marques.

Por sugestão dela, tirámos a porta do andar de baixo da casa. Assim, o homem não deixava lá mais ovelhas. Limpámos tudo e fomos à nossa vida.

No caminho, ligámos ao pai do meu amigo para lhe contar o que se passou e perguntámos se conhecia o homem.

“Esse gajo é o maior filho da puta daí da zona.”

Uma semana depois, voltámos. Continuámos a limpar entulho, retirar um telhado desfeito e a combater vespas asiáticas. Que mais pareciam ter motor de 600cc e armadura de titânio.

Estava à conversa com a Cleonice quando passa uma dessas vespas. Ela, sem hesitar: TAU! Chapada com uma placa de madeira. A vespa cai, morta.

Foi aqui que aceitei. Esta mulher é uma terminadora implacável. De pastores e de vespas.

Surgiu-nos um problema: muito entulho e nenhum sítio para o deixar. Ligámos à Resulima. “Isso é com a câmara.” Ligámos à câmara. “Isso é com a Resulima.”

Ligámos à Cleonice. Resposta?

“Isso é comigo. Deixem cá no terreno e eu trato do assunto.”

Voltámos na semana seguinte: tudo limpo. Tinham levado o entulho, limpo o tanque, retirado pedras, arranjado os terrenos ao lado… estava tudo irreconhecível. A Cleonice só disse que falou com o presidente da junta e meteu as coisas a mexer.

Como se não fosse nada.

Ainda por cima, o andar de baixo da casa estava limpo. Nem sinal de ovelhas.

Daqui a umas semanas, vamos lá limpar o terreno da Cleonice. Não por gratidão. Mas para não acabarmos enterrados a 16 km do cu de Judas.

Comentários

  1. Estou com refluxo gástrico de tanto rir. Foda-se, incrível. Os velhotes das aldeias são qualquer coisa. Viva Portugal!

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